quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Contagem regressiva

Décimo andar. Aponta o ponteiro. Eu moro aqui. Escolhi esse apartamento, pois nessa altura o vento é mais forte e frio. As portas se debatem e, tremem de medo, as janelas. O ronco vultoso de Deus me mantinha acordado. Vivo. Ainda. Ah, as grandiosas Janelas! Meu caprichoso capricho! Não sei como cheguei a elas. Arrepio.

Nono andar. Descemos bem devagar. Como os últimos dias úteis, que me furtavam a vida aos poucos. Inúteis como somar. Nesse andar morava um saxofonista. Ele tocava antes de chorar. Mas chorava mais alto e bonito. Pobre homem, pobre homem! Essa canção tão batida.

Oitavo andar. Andar dos cachorros. As donas - todas iguais - sempre se juntavam nas reuniões. Sentiam-se fortes como dobermans e em seus colos, poodles! Faziam reivindicações. Latiam. Rosnavam. Mordiam. Todas num só andar. “Andar do cão!”, eu dizia. “Cadelas carentes”, eu pensava. Fecho os olhos com força.

Sétimo andar. Não me recordo de quem morava ali. Cogito um velho moribundo. Covarde para partir em vida. Esperando a morte levar seu corpo, que já não é vivo há muitas existências. Ou um viciado. Ou um sem serviço. Ou um casal apaixonado... Suspeitos! Quem sabe o monstro que mora no, sempre, desconhecido? "Estou perdido!". Reabro os olhos.

Sexto andar. Morava um moleque chato e uma mãe linda. Os outros vizinhos não são tão chatos quanto o guri, nem tão lindos quanto a mulher. Não vale a pena me lembrar destes. Mas essa mulher povoou meu pensamento quando cheguei aqui e resquícios de vontades me invadiam a qualquer momento. Ainda agora consigo a imaginar nua. "Vadia! Mulher de merda.". Minha querida, linda, mulher!

Quinto andar. Morava aqui uma senhora que vendia quentinhas. Falta de amor. Falta de sexo. Falta de ar. Falta de dinheiro... Mas desabrochava humor a qualquer. Traste ou boa praça. Era temperada de graças. Graças a Deus! Santa senhora! Risonha, educada... Feliz! Vai viver até uns cento e vinte... E cozinhando! Fazia-me lembra de minha saudosa mãe pela candura. Metade do caminho percorrido! Rompem-se os tímpanos.

Quarto andar. Os playboys universitários. Nenês em fraldas. Mamadeiras de vodka. Mimos dos pais. Ricos do interior. Darão bons advogados, com certeza! Merda para se pisar e feder. A distância desse futuro ingrato já me deixa feliz. A distância de qualquer futuro é um assombroso alívio e uma estranha esperança. Desse andar já consigo ver os ladrilhos, os canteiros, as flores, a terra. E consigo imaginar esses enfeites em cima de mim.

Terceiro andar. Andar da síndica. Mulher de meia idade. Sem romance e sem paixão. "Desgraçada!". Rainha das multas e das sanções. Passa rápido esse andar. "Essa puta devia estar aqui comigo!". O vento é quente. O ponteiro aponta o chão.

Segundo andar. Perco o ar. Duas lágrimas caem. Chegarão antes de mim. As veias saltam. Um puto joga um resto de maçã pela janela. Isac Newton!

Primeiro andar. Último arrepio. O coração pára. Ali morava Clara. Ela vai saber. Ela vai chorar dias e dias. Tenho certeza! Vai se desesperar, enlouquecer... Pobre Clara. A culpa é minha!


...


Térreo. - Minha mãe, eu vim!






André Vargas

7 comentários:

  1. o Quarto andar é o pior! Deus que me livre dos advogados! hahaha

    gostei do texto.

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  2. que baleia! inevitável ñ imaginar esse numa Artimanha.

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  3. Arrisco em dizer que é a melhor coisa que eu já li escrita por você, porque esse texto não é só o que ele conta, é como ele foi escrito, os recursos utilizados, as nuances, os imperceptíveis, a poesia utilizada para falar de tragédia, desespero, morte!
    É bonito do décimo andar ao térreo, poderia listar cada trecho que achei incrível, que deu beleza a história, mas só posso dizer que foi uma construção perfeita, digna de um grande escritor.
    Eu queria ter escrito isso! rs.
    Parabéns!!!

    Disse no inicio que foi a melhor produção sua, mas o bom e a surpresa é saber que o melhor seu ainda esta por vir!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Gostei do jeito que você encontrou pra falar sobre suicídio. Nem dramático demais e sem o velho humor negro, foi um bom equilíbrio, gostoso de se ler.

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